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ONU propõe uso de águas residuais para amenizar crise hídrica

Publicado em 12/04/2017

Num mundo em que dois terços da população vivem em áreas com escassez de água durante ao menos um mês por ano, sendo que 500 milhões de pessoas residem em regiões onde o consumo excede em duas vezes os recursos hídricos renováveis localmente, a busca por fontes alternativas é imperativa. E uma das soluções pode ser a água residual. O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, divulgado nesta quarta-feira, Dia Mundial da Água, propõe uma alteração nos paradigmas sobre a destinação das sobras da produção agrícola e industrial, e do consumo nas cidades: de “tratamento e eliminação”, para “reúso, reciclagem e recuperação de recursos”.

— A água residual é um recurso valioso num mundo onde a água é finita e a demanda é crescente — disse Guy Ryder, presidente da ONU-Água e diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho. — Todo mundo pode fazer a sua parte para alcançarmos o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável de cortar pela metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentar a reutilização segura do recurso até 2030. É apenas cuidar da gestão e reciclagem da água que corre pelas nossas casas, fábricas, fazendas e cidades.

Segundo a base de dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as extrações globais de água doce no mundo foram de 3.928 km³ em 2010, sendo que as retiradas cresceram cerca de 1% ao ano ao longo das últimas três décadas. Desse total, cerca de 70% foi destinado para a agricultura, outros 19% foram para a indústria e apenas os 11% restantes foram usados pelas cidades. A quantidade de água que as pessoas bebem, de aproximadamente dois litros por dia, representa apenas uma fração do total.

80% DO DESPEJO É INADEQUADO

Mas o cuidado com a água após o uso ainda é precário. Os países de renda alta tratam, na média, cerca de 70% das águas residuais urbanas e industriais que produzem, mas essa proporção cai para 38% nos países de renda média-alta e para 28% nos países de renda média-baixa. Nos países de renda baixa, apenas 8% dos resíduos são submetidos a algum tipo de tratamento. No mundo, mais de 80% das águas residuais são despejadas no meio ambiente sem o cuidado adequado.

Os números sobre o acesso a serviços básicos de saneamento são estarrecedores: de acordo com o relatório, 2,4 bilhões de pessoas no mundo ainda não têm acesso a instalações sanitárias adequadas, e quase 1 bilhão de pessoas ainda praticam a defecação ao ar livre. Estima-se que 842 mil mortes ocorridas em países de renda média e média-baixa em 2012 foram causadas por água contaminada, pela falta de instalações para a higiene e por serviços sanitários inadequados. Essa situação contribui para o avanço de algumas doenças tropicais, como a cólera.

— Os impactos mais importantes da falta de saneamento são sobre a saúde humana — disse Massimiliano Lombardo, oficial de Meio Ambiente da Unesco no Brasil. — A água contaminada pode transmitir várias doenças, entre elas a cólera e a febre tifoide.Além dos riscos para a saúde, o despejo sem tratamento das águas residuais traz sérias ameaças para o meio ambiente e para as próprias fontes de água, o que pode acirrar ainda mais o problema da escassez de recursos hídricos. Solventes e hidrocarbonetos produzidos por atividades industriais e de mineração, assim como o descarte de nutrientes de criações intensivas de animais aceleram a eutrofização — excesso de nutrientes que provoca o aumento na quantidade de algas e a diminuição da oxigenação — de ecossistemas marinhos. A estimativa é o fenômeno esteja afetando áreas que somam 245 mil km².

Também cresce a preocupação com a presença de poluentes como hormônios, antibióticos, esteroides e outros compostos químicos na água residual. Seus impactos sobre a saúde humana e o meio ambiente ainda não são completamente compreendidos.

— Se uma cidade não tem coleta de esgoto, significa que as águas residuais não são bem descartadas, e elas acabam contaminando as pessoas, os animais e o meio ambiente — completou Lombardo.

METADE DOS BRASILEIROS NÃO TEM ACESSO A ESGOTO

O relatório das Nações Unidas não traça o perfil por país, mas dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento, elaborado pelo Ministério das Cidades, mostra que aproximadamente a metade da população brasileira não possui acesso a redes de esgoto, e apenas 42% a sistemas de tratamento. Para Édison Carlos, presidente-executivo do Instituto Trata Brasil, a questão hídrica sempre foi relegada a segundo plano no país.

— É uma questão histórica. A gente vive numa cultura de muita água. Tirando o Nordeste, o brasileiro sempre acreditou que o recurso era abundante, mas as crises hídricas mostraram que isso não é verdade — disse Carlos. — E mesmo com a crise, bastou chover para o debate desaparecer.

De fato, o país possui grandes reservas. A América do Sul possui 26% das reservas globais de água doce, com apenas 6% da população mundial. Mas a distribuição não é uniforme, e algumas regiões sofrem com a escassez. Na média, alagoanos e pernambucanos têm consumo per capita menor que o recomendado pelas Nações Unidas, de 110 litros diários. Por outro lado, os cariocas, maiores consumidores do país, gastam mais que o dobro da recomendação.

CAMINHOS PARA AMPLIAR O REÚSO

Nesse cenário, de aumento na demanda e de alto desperdício de um recurso finito, o reúso surge como possível solução, e oportunidade. Os custos de tratamento e purificação de resíduos ainda é mais alto que a simples captação em reservatórios, mas existe potencial econômico a ser explorado que pode compensar o investimento. Graças ao desenvolvimento de novas tecnologias, certos nutrientes, como fósforo e nitrato, podem ser recuperados e reutilizados como fertilizante. A produção de energia pelo biogás é outra alternativa.

No Japão, o governo criou a meta de recuperar 30% da energia da biomassa das águas residuais até 2020. Todos os anos, a cidade de Osaka produz 6.500 toneladas de combustíveis extraídos de 43 mil toneladas de esgoto. Na Suíça, uma lei obriga a recuperação de certos nutrientes, como o fósforo.

Para acelerar a adoção da água de reúso e recuperação de recursos, a ONU pontua cinco caminhos a serem seguidos: fazer o enquadramento legal e regulatório; criar mecanismos apropriados de financiamento; minimizar os riscos às pessoas e ao meio ambiente; construir conhecimentos para a elaboração de projetos; e conscientizar a população.

— Mas cada um pode fazer a sua parte. As águas residuais não são apenas esgoto, são apenas águas que foram transformadas após a utilização. No âmbito doméstico, as famílias podem aproveitar a água residual, seja tampando a pia da cozinha para lavar mais louça, ou coletando a água do banho para usar na descarga ou lavar o carro — disse Lombardo. — É possível fazer muito em termos de prevenção do uso, gerando menos resíduos. E reutilizar o recurso mais vezes antes do descarte.

Fonte: O Globo

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